TRUE PSYCHIATRY

By 22 de outubro de 2021 TEPT

TRUE PSYCHIATRY

Marcelo Feijó de Mello

A psiquiatria como especialidade médica, deve ser baseada em evidências, contudo sua aplicação clínica diverge em função do psiquiatra ou da psiquiatra. Vejo alguns colegas que restringem o diagnóstico aos critérios descritos pelas classificações oficiais como o DSM americano ou a CID da OMS. Surgem críticas e insatisfações da psiquiatria neste formato. As mudanças nos critérios diagnósticos foram muito saudáveis à psiquiatria, num momento em que o mesmo diagnóstico podia ser muito diferente, dependendo dos referenciais usados. Tínhamos a escola francesa, alemã, inglesa, americana. Mesmo aqui no Brasil, tínhamos escolas, onde cada uma tinham seus critérios. Uma torre de Babel. As críticas na época eram que os diagnósticos eram fracos e questionáveis, a reação veio com o DSM III (3ª edição) há 41 anos. Propostas de classificações com diagnósticos operacionais mais adequados as pesquisas e a um modelo sanitarista da Medicina (que se impôs graças a prevenção e a necessidade de vacinação). É portador de um “transtorno” aquele que cumpre seus critérios diagnósticos. Com estas mudanças vieram promessas de aproximação da Psiquiatria e dos psiquiatras à Medicina e às ciências. É inegável o ganho inicial para a psiquiatria para sua aceitação social e institucional, muito desgastada com o movimento antimanicomial. Com a mudança houve também avanços e ganhos econômicos bilionários na forma de verbas para pesquisa e dos ganhos da indústria farmacêutica. O DSM proposto pela Associação Americana de Psiquiatria surgiu com uma mudança de poder nesta associação vencida por sanitaristas e com a saída dos psiquiatras clínicos.

Mesmo na academia em nosso país, epidemiologistas e farmacologistas superaram os psiquiatras clínicos em concursos para professores. O que implica uma mudança no que tem sido ensinado as novas gerações de psiquiatras.

Apesar dos ganhos, houve uma superficialização da prática clínica e uma perigosa indefinição do campo de atuação da psiquiatria. A cada edição da classificação do DSM aumenta-se o número de “transtornos mentais” aumentando o risco de uma psiquiatrização dos comportamentos. É importante frisar que um desvio da norma do comportamento NÃO É DOENÇA, mas pode ser desencadeado por uma doença. O poder dado a estes construtos efêmeros, tem como maior risco o de transformá-los em verdadeiros dogmas.

Quando conceitos são tratados como objetos há um empobrecimento do diagnóstico, levando a um desinteresse pelo subjetivo e com uma preocupação com o óbvio. A proposta inicial do DSM era de ser descritivo e ateórico, o que é impossível. A psicopatologia não é inteiramente descritiva, mas também interpretativa.

A insatisfação referida a prática da Psiquiatria, em parte tem relação com a pasteurização dos diagnósticos e das relações com os pacientes. É uma especialidade eminentemente clínica, não conta com testes diagnósticos específicos. Uma prática psiquiátrica não pode prescindir de posições conceituais sobre o que é a doença mental, e como se dá o adoecimento do ser humano, que vai muito além de completar um “checklist”.

A psiquiatria como todas as ciências, assim como a física a mais “objetiva”, tem um grau de indeterminação e incertezas. Mesmo Einstein dizia que a “ciência é em si mesma, metafísica”. A Psiquiatria como especialidade médica, conta com os conhecimentos biológicos, mas também com conhecimentos psicológicos, sociológicos e filosóficos, entre outros, para conceber o adoecimento de um indivíduo, e buscar tratamentos para esta pessoa. A psiquiatria como um corpo do saber científico-médico é uma atividade aplicada no campo dos distúrbios mentais. Um instrumento fundamental da psiquiatria é a psicopatologia, uma disciplina autônoma, que estuda alterações de qualidade, variadas e complexas do funcionamento psíquico, fenômenos psicopatológicos não representam desvios quantitativos do normal.

A psiquiatria tem interesse no homem enfermo da mente em particular, trata indivíduos acometidos de doenças mentais. Assim para o psiquiatra não interessa o enfermo somente do ponto de vista psicopatológico, mas sim ver o paciente em sua totalidade. “Doença” é um dos instrumentos de trabalho da Medicina. A substituição do termo por transtornos, desordens, ou equivalentes, para se evitar controvérsias doutrinárias, nunca poderá superar os problemas da cisão entre mente e corpo.

O DSM e a CID da Organização Mundial de Saúde ao serem usados como se fossem a clínica, caem na armadilha da superficialização e da falta de limites, que levam a generalização de criação de diagnósticos. As doenças são conceitos. A Medicina sem categorias diagnósticas ou sem a delimitação de doenças seria inútil. A medicina é um corpo de conhecimento com 2.500 anos, se usarmos Hipócrates como referência. O paciente é único, mas para o estudo precisamos de conceitos que pertencem a ciência e que são compartilhados pela comunidade científica. Portanto precisam ser definidos e sistematizados em categorias. A categoria omite parte das características individuais e registra somente os aspectos que qualificam um membro da categoria e o separam de outras categorias. Como qualquer afirmação científica não pode ter a pretensão de dizer tudo sobre o objeto de estudo. As “doenças” são em si um modo de conceber categorias de situações. O psiquiatra antenado no mais moderno das evidências, deve saber como aplica-las nas relações humanas inerentes da clínica.

A prática psiquiátrica somente baseada em critérios diagnósticos é extremamente limitada. O psiquiatra clínico precisa através de uma minuciosa anamnese conhecer as queixas do paciente, como evoluiu seu quadro, conhecer história da doença atual, a história familiar, a história patológica pregressa assim como sua curva de vida.

Após a qual fará um exame clínico e psiquiátrico para finalmente fazer hipótese(s) diagnóstica(s) para então propor um tratamento. O diagnóstico deve ser “psicopatológico, os sintomas devem ter um sentido dentro do contexto de vida e personalidade do paciente. Um diagnóstico construído para qualificar e quantificar ‘transtornos’ de ‘um’ comportamento estatisticamente “normal” não têm nenhum sentido clínico. O diagnóstico deve compreender e explicar condições ‘patológicas’ comumente chamadas “doenças”.

Diagnósticos coerentes e ‘confiáveis’ interessam às seguradoras de saúde, indústrias farmacêuticas que financiam “pesquisa” para validar seus medicamentos, aos organismos governamentais para registro e para planejamento de políticas públicas de saúde … as “escalas” passaram a ser a base dos “estudos multicêntricos” que respaldam as classificações diagnósticas, daí às metanálises e à construção de algoritmos que irão criar “guidelines” para a prescrição dos mesmos medicamentos ‘estudados em múltiplos centros’. O psiquiatra tem que lidar com a pluralidade e ao mesmo tempo singularidade de cada indivíduo em seu processo de adoecimento, o diagnóstico é clínico e psicopatológico. Para chegar a tal diagnóstico precisa ter além do conhecimento, a capacidade de interagir com este indivíduo, estabelecer uma aliança empática, que permite entrar em sua história e relações. Assim entendo a psiquiatria.

A prática da medicina precisa se apropriar de um olhar preciso, sem pressa e pressão, aproveitando a aceleração dos conhecimentos advindos da ciência. A falta de tempo, e a imposição de limites de tempo para as consultas, levam a problemas encontrados nos sistemas tradicionais de saúde, mesmo em países desenvolvidos, com uma degradação da qualidade da medicina e das relações humanas envolvidas. Eu e vários colegas na linha de frente do ensino da psiquiatria se esforçam em passar esta história aos colegas mais jovens. Sempre refletindo sobre nosso papel e relações com aqueles que tratamos, sem a imposição de interesses outros, sem também sermos cúmplices do uso indiscriminado e fora do contexto clínico de “transtornos Mentais”.